O princípio da consensualidade, enquanto princípio do Direito, significa que o direito real se constitui ou se transmite no momento da celebração do contrato, de forma instantânea e automática, sem necessidade de se proceder à entrega da coisa ou do registo no caso de coisas sujeitas a registo, e sem que disso dependa o cumprimento da obrigação estabelecida no contrato de alienação.
Todavia, a cláusula de reserva de propriedade é um mecanismo jurídico que permite afastar o princípio supramencionado na medida em que, mediante um acordo entre as Partes, a transmissão da propriedade sob uma coisa determinada poderá ficar dependente do cumprimento de uma obrigação pela parte adquirente. Sem embargo de sua aparente simplicidade, a cláusula de reserva de propriedade possui diversas particularidades legais e práticas que merecem atenção. Questões como a sua aplicabilidade em diferentes tipos de contratos, os efeitos dessa cláusula na relação entre as partes e os direitos do credor e do devedor são alguns dos tópicos relevantes susceptíveis de análise.
A reserva de propriedade, com a fundamentação legal no artigo 409.º do Código Civil (doravante apenas designado por“CC”), consiste na permanência de determinada coisa na titularidade do alienante até à verificação de certo evento ou até do cumprimento total ou parcial das obrigações que recaiem sobre o adquirente.
Tratando-se de imóveis ou de coisas móveis registáveis, só a cláusula inscrita no registo é oponível a terceiros, isto é, se o contrato for registado na respectiva conservatória o mesmo impossibilitará que um terceiro venha a adquirir o referido bem, podendo, assim, o beneficiário da cláusula reivindicar a sua propriedade.
É comum o recurso à reserva de propriedade nos contratos de compra e venda em que o regime de pagamento acordado entre as partes é o de prestações, por ser um negócio que envolve riscos elevados para o vendedor, pois a celebração do contrato acarreta a mudança de uma situação de proprietário de um bem para a de um mero credor quirografário, sem qualquer garantia sobre o bem vendido. Desta feita o vendedor, de forma a garantir que o pagamento lhe seja feito na sua totalidade, reserva para si a propriedade do bem e transfere-a apenas após a realização integral do pagamento . Na eventualidade de o comprador incumprir a sua obrigação, o vendedor poderá resolver o contrato e reaver a sua coisa ao abrigo do artigo 886.º do CC, pois o aposto “salvo convenção em contrário” constante na norma também se refere à cláusula de reserva de propriedade.
Por outro lado, poder-se-á resolver o contrato de compra e venda com pagamento a prestações nos termos do artigo 934.º do CC, porém, este artigo prevê um regime especial que se aplica nas situações em que a coisa sobre a qual recai a reserva de propriedade tenha sido entregue ao comprador; a falta de pagamento de uma só prestação que não exceda a oitava parte do preço, determina o artigo 934.º do CC, não dá lugar a resolução do contrato. Isto significa que o vendedor apenas poderá resolver o contrato se o comprador deixar de pagar uma só prestação igual ou superior a 1/8 do preço acordado. Todavia, se o comprador deixar de pagar duas prestações, mesmo que conjuntamente não excedam a oitava parte do preço, o vendedor poderá, também, resolver o contrato, pois o artigo aplica-se apenas nos casos em que haja falta de pagamento de uma só prestação.
Uma questão interessante que nos cabe aqui analisar ainda no âmbito do artigo 934º, é:
Saber se tão logo o vendedor se depare com a falta de pagamento de uma só prestação superior a 1/8 parte do preço, poderá este imediatamente resolver o contrato ou deve conceder um prazo suplemantar ao comprador para efectuar o pagamento? Entendemos que este não deve resolver imediatamente o contrato, pois acreditamos que a interpretação do artigo 934.º conjugado com os artigos 801.º e 808.º do CC deverá ser feita no sentido de que havendo falta de tal pagamento, o comprador considerarse-à em mora. Consequentemente, a mora converter-se-á em incumprimento defintivo logo que o vendedor demonstrar que perdeu o interesse na prestação ou que esta não tenha sido realizada dentro do prazo admonitório fixado ao comprador. Assim, poderá o vendedor resolver o contrato mediante declaração ao comprador, nos termos do n.º 1 do artigo 436.º do CC. Neste mesmo sentido deliberou o Supremo Tribunal de Justiça Português no acórdão 02B3961 de 09-01-2003.
Em suma, a reserva de propriedade impedirá que todos os demais credores do comprador executem a coisa sobre a qual recai a reserva, e caso tenha sido penhorada, o beneficiário da reserva poderá se opor à execução por meio de embargos de terceiro. Importa, ainda, salientar que se os credores do vendedor executarem o bem sobre o qual recai a reserva de propriedade, o comprador, sendo possuidor da coisa, poderá igualmente se opor diante dos credores do vendedor mediante embargos de terceiro, considerando a sua expectativa real de vir a adquirir a coisa objecto da reserva de propriedade.
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